Luciana, santa de Góis

Gerações se passaram e já os pais de Luciana perderam o nome pelas azinhagas do tempo arruinado.

Mas nos Góis ainda há paredes de pedra onde ela encostou e amparou o corpinho franzino.

Viveu no tempo dos avós destes avós de hoje, uns já mudos, outros estropiados da memória, muito poucos lhe dão achegas à biografia que o tempo faz cada vez mais escassa.

A casa era remediada a poder de enormidades de trabalho, criavam-se gados, ovelhas e cabras berravam no curral.

No tempo próprio, talvez pelo São Mateus, o pai de Luciana ia apurar dinheiro à feira, partiu caminhos adiante levantando uma nuvem de pó, levava os chibos do ano com esperanças de que lhe rendessem bom dinheiro, nunca seria demais para o governo da casa e para aforrar numa qualquer infusa embutida na taipa.

Não sabemos porque artes, talvez daquelas artes apenas ao alcance de anjos e santos, Luciana, menina dotada de fina perspicácia, lhe palpitou que mesmo estando o pai longe, lhe sorriu a sorte ou o talento para o negócio e nesse instante, em que em casa se partiam amêndoas, já ele tinha feito negócio e estava provido de copiosas libras. Manifestou à mãe essa ventura, mas também lhe recomendou que nada dissesse, até que o pai assomasse à porta e confirmasse a façanha. A senhora, impenitente faladora, depressa encontrou ocasião de vangloriar o suposto sucedido, sem cuidar que daí pudesse advir alguma marosca do destino.

Quando o pai chegou da jornada, encontrou Luciana muda e queda como uma estátua, e um regato de prantos das mulheres da casa e de suas paredes meias.

O dinheiro ganho na venda dos chibos nada poderia com esse mistério, Luciana perdeu a fala e o apetite, não houve rezas, nem vizinhas, virtuosas ou não, que alterassem esse fado, daí em diante, Luciana não voltaria a comer nada que se visse, nem a falar nada que se ouvisse. Consta que viveu vinte anos sem comer, caminhava apoiada no ombro de alguém, bebia água sendo Verão, talvez comesse um baguinho de trigo ao levantar, afiançam uns, nada comia dizem outros, até que havia quem a experimentasse, deixando mesa posta todas as noites, e todas as manhãs lá estavam os petiscos sem que a santa caísse em tentação com queijos, chouriças ou pupias ainda mornas do forno. Luciana era desluzida pela comida, em tempos de fome seria sinal de atolambada, ou de santidade, pela persistência sobre-humana, pela resistência às leis da morte, por santa foi dada

Mais não restou à vida que ter todas as contemplações com esta mulher, que não tendo chegado à madura idade, ainda pelos Góis se demorou uns bons vinte anos, não fazendo que se saiba outro milagre que o de se manter viva.

Ainda dela restam fragmentos de colares e fios de ornamento, meticulosamente divididos entre os seus conterrâneos, cada vez menos crentes à medida que se sucederam as gerações de incréus que nada viram, cada vez menos ouviram, e mais por demais duvidam do fastio desta Luciana. Dúvidas e fantasias há muitas e para todos os gostos, há até quem diga que Luciana caiu em tentação por um torranito de açúcar, onde foi achada a lambuzar o dedo, prazer é coisa levada do diabo, e que mais uma vez teria sido essa inconfidência da língua solta de sua mãe, que a perdeu em definitivo.

Mas em princípio, ela morreu.

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