A mesma volta

A volta é a mesma de sempre, levantar e avivar o lume na casinha do forno.

Soltar as galinhas, limpar o pocilgo, dar de comer à mula, ir à serralha para os coelhos, voltar a casa ao café na escolatêra, untar a torrada e comê-la.

Depois mudar a água das azeitonas, ir a colher as couves velhas para as galinhas e levar as ovelhas à quinta do doutor, aquele ervançum todo tem que ser aproveitado.

Desde que chegou esta malazanga os moços andam mais desviados, andamos desviados uns dos outros, essa é que é essa. Não sei de onde veio uma coisa assim, também é das tais coisas, não me acrescenta nada saber, se os que sabem não sabem, haveria de ser eu a saber, alguma vez?

O que sei é que os meus moços agora não arrimam cá, vão falando de longe, às vezes telefonam, ou levam dias sem nada dizer. Fora isso, a vida é a mesma, os bichos comem igual ao que comiam, as batatas têm o seu tempo de ser semeadas, as favas já trazem florinhas e as abelhas começam a espertar, a primavera está aí quase a rebentar.

Se antes pouco abalava de cá, agora ainda menos, o Raposo fechou a porta, é menos esse que gasto, poupo em médias e medronhos, aforro mais um poucachinho, o vizinho Narciso não arrima cá como usava fazer, via-me em trabalhos para me poupar às lérias dele, é um esparvoeirado, conversas sem tino, falava deste e daquela e do outro, como se eu tivesse vagar para fazer caso da vida que corre aí de volta. Agora é um descanso, o Narciso tem medo da morrinha e não arrima cá prestes, folgo dos ouvidos, sobram-me vagares. Vagares para te espreitar melhor.

Agora estou confinado em ti, oiço-te melhor no silêncio do mundo, vamos juntos semear a leira dos coentros.

Quando chegar o verão, vais ter agora mais vagar para regar o pimentão, dar a torna como o fazias em moça, e eu a voltar cinquenta anos atrás, ao meu assombro inicial, via-te as pernas muito direitinhas, muito parelhas, saindo da saia, e a água corria por baixo a alagar os canteiros, com a enxada davas a torna e era tudo bem feito, muito perfeitinho, regavas bem, muito bem. Eu via e fazia que não te via para não ter vergonha.

Quando chegar o verão, vais também ter mais tempo para descansar comigo na hora da calma, ambos confinados num abraço ou num sonho na parte da tarde, até à hora em que os motores de rega começam a tirar água para o tanque e a maré se levanta a anunciar a hora da fresca.

O meu confinamento é feliz e nada é mais perfeitamente perfeito do que estar aqui contigo sem abalar para lado algum. Até que um dia se nos acabe.

A volta é a mesma de sempre, a nossa vida é cuidar dos bichos e de nós, cuidar da chegada de mais um dia e outro e outro. O mesmo de sempre.

 

[ Fui desafiado pela Joana Gomes e pela revista Ovelha, da ACOS, para escrever sobre a pandemia, o confinamento que vivemos. Tentei imaginar como poderiam ser os dias de confinamento por estes montes onde andamos]

 

 

 

 

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