Cresci no tempo das redes sociais, era na rua que nos criávamos. Quando muito, tocava o telefone lá em casa, a minha mãe atendia e chamava-me, se fosse caso disso.
Na rua encontrava este ou aquele e íamos ao ninho ou dar uns toques na bola. Fomos crescendo e aumentando as nossas possibilidades, dávamos banho no rio, no cais, nas azenhas ou na boca da ribeira. Pilhávamos a fruta nas hortas, tirávamos peixe das ribeiras e ao fim do dia chegávamos a casa cansados e de boca pintada, consolada de amoras.
Depois começámos a reparar que existiam raparigas, e então o mundo abriu como abre o sol em certas manhãs de névoa. Certa noite que já ia bem embalada em boas copanadas no “Lance”,altas horas de uma bela noite de verão, daquelas que todos conheceram, as que se não querem terminadas, eu e o bom do meu amigo Serafim, acompanhados de duas moças, vimo-nos contentes e embarcados num dos vários barcos que estavam no cais, nem importava de quem era, bastava-nos que fossem barcos e que nos levassem.
Os dois, toca de remar, passear as meninas até às azenhas, os pássaros sacudiam-se nas ramagens, não apreciam incursões náuticas fora de horas. Passando à beira do hortejo do senhor Zé, escasso latifúndio regado a poder de regador com a água do rio, lembrou-se o meu camarada de desembarcar a pilhar umas melancias. Bem lembrado, com muito ânimo o fizemos, quatro melancias, uma para cada bico. Voltando á remada, o Serafim não gostou da que lhe calhou, estava verde, aventou-a, ficou na água a boiar naquelas águas quase paradas do rio. Era um mero detalhe que não atrapalhava o superior desígnio de impressionar as raparigas com um pouco da adrenalina de aventura e o chap chap de umas potentes remadas.
Por lá andámos nas azenhas, nem vos conto a fazer quê, só vos digo que às cartas não jogámos, até o astro se erguer por cima dos cerros e o perdigão reconcanar por lá.
Na indolente descida do rio a caminho do cais, passámos à vista do senhor Zé na sua horta, já lá andava a apreciar o estrago nas melancias, passamos diante dele e da melancia verde que boiava. A berraria dos charnecos no arvoredo da margem quase que apagou a do senhor Zé que, todavia, vinha acompanhada de abundantes gestos e punhos no ar. Aparte isso conseguimos desembarcar sem dar de caras com o dono do barco.
Assim pôde, o senhor Zé alcançou o meu pai na rua a contar-lhe dos desmandos e prejuízos que eu fiz na horta, umas melancias tão boas, mais o que estragam que o que se apura. O meu pai, sempre teve memória, lamentou muito pois claro, rapazes já se sabe, mas também lhe disse, melancias tenho lá avondo, assim queira vá lá buscar, chega para todos, mas rapazes, pronto, são rapazes.
Chegou a casa, falou no assunto, mas piscou-me o olho e apresentou-me um sorrisinho manhoso, vê lá se para a próxima fazes a coisa mais bem feita, ó mariola.
Tudo isto se passou, porque naquele tempo ainda havia redes sociais.
[ As histórias ouvem-se aqui e ali, algumas transformam-se, reescrevem-se com mais uns pontos e contos aqui e ali. Esta foi ouvida ontem, mais coisa menos coisa e evoca-nos o tempo em que havia verdadeiras redes sociais.
Entretanto hoje não haverá transmissão do “Terra que Conta”. Hoje há bola na Rádio Mértola, tudo para.]