A Fortunilha

Era uma casa mal amanhada, inóspita, casa de homens sozinhos não é de aconchegos.

Amadeu possuía uma linda cabrada e com elas palmilhava cerros e barrancos, até ser hora de se esconder o astro rei, ocasião onde as encerrava na sua cerca de velhas amendoeiras sobre o Vascão e lá ficava a cismar na vida, ouvindo o marulhar das águas da ribeira até serem horas de sossegar. Reparava e surpreendia-se com a influência que o chibato azul tinha por se deitar sobre uma enorme laje branca, de um branco insólito, quase mágico, uma vez que ali não havia pedras brancas, antes escuras taliscas que afilharam a terra avara daquelas cerros.  Amadeu explicava o vício costumeiro do bode, como uma obediência ao destino dos animais, uma formulação que se aplicava aos mais variados sucessos da vida animal, como se conduzidos pelos ditames de um Deus próprio.

Tudo ia muito bem nesse rame-rame, até que das magias de estar vivo, passaram a fazer parte as dificuldades com o sono. Com o andar do tempo e da vida, deixou de ser o sono dos justos.

Eram sonhos atrás de sonhos, o homem andava desnoitado e não havia por ali prior a quem se confessar, apenas Óscar, um irmão mouco, tão surdo, que melhor seria contar as tropelias do sono ao chibato azul da cerca das amendoeiras.

Ainda assim tentou, esbracejou e gritou, sonhava que uma voz lhe aparecia no dormir e proclamava sempre o mesmo: 

Se queres fortunilha vai à ponte de Sevilha e isto dizia numa algaraviada que parecia espanhola, assim como a Sevilha é para lá da Ribeira do Chança, que Amadeu sabia ser passagem de contrabandistas e velhacoto de foragidos.

As semanas passaram-se nisto e Amadeu, de tanto repetir e soletrar, conseguiu fazer-se entender ao Óscar, um pouco antes de dar em doido com as vozes que lhe apareciam ao fechar dos olhos.

Resolveram tirar-se de teimas, iriam a Sevilha, na carrinha de caixa aberta onde levavam os chibos à feira de São Mateus. Levariam o tempo que fosse necessário à resolução desta teima com a voz nocturna dos sonos de Amadeu, certamente um sinal da providência, uma promessa de melhorar de vida, poderiam não perceber muito de espanhol mas imaginavam que fortunilha tivesse algo em comum com fortuninha, ou quem sabe, fortuna, em barda.

Lá chegados tiraram as medidas à primeira ponte que viram, espreitaram de todas as maneiras possíveis, encarrapitaram-se até num corrimão. O mistério persistia. Passaram a outra ponte sem melhores resultados. Calhando haveria muitas pontes lá por Sevilha, já estavam a esmorecer, sentados na base de uma coluna da ponte, enquanto trincavam a merenda, um pão de quilo, um naco de queijo seco, do ano passado, e uma garrafinha de tinto meio envinagrado lá das parreiras do monte. 

Tão insólito e esmorecido par chamou a atenção de um transeunte, obra de milagre, parecia português e se lhes dirigiu em português, como se estivessem em Portugal:

–  Que andais aqui fazendo, assim esmorecidos?  Reparei que andavam aí às voltas, parece que perderam alguma coisa nesta ponte.

Amadeu contente de ouvir falar a sua língua em terra de gente estranha, ganhou ânimo para se explicar, contar de suas penas e da esperança que lhe vinha em sonhos por uma voz desconhecida, talvez augúrio de fortuna, algures pelas pontes de Sevilha.

O transeunte misterioso quis sossegá-los, não fizessem caso de sonhos, são touradas da nossa cabeça conosco mesmos, talvez até obra do diabo, já tinha uma vida inteira de tal desacato, se olhasse a isso não teria descanso e ele era homem que dormia que nem um barroco. Imaginassem lá eles que há anos sonhava haver em Portugal, ao pé de uma ribeira, uma cerca com amendoeiras aonde pernoitava um rebanho de cabras e numa laje branca que lá havia, um bode esmalucadamente azul se deitava a dormir um sono profundo e debaixo dessa laje estaria uma arca cheia de libras de ouro. Imaginem a tolice.  

Amadeu ouviu isto e daqui tirou logo o desenho. Agradeceu os bons conselhos, afiançou que de tais verdades retiraria sossego e com algumas vénias se despediu do estranho mensageiro, tomou o caminho de casa com o irmão,  nisso empregando o máximo de urgência e aflição.

Não houve sequer tempo de dormir ou cear quando já noite alta chegaram. Foi o tempo de irem à casa dos desarrumos buscar ferramenta, pá, um pique, o alvião e sacudirem o chibato de cima da laje que o momento era grave, estavam esbaforidos e com o coração em tropelia.

Levantaram a laje e não precisaram de cavar mais que uma mão, logo ali apareceu a fortuna que alguém um dia ali esqueceu.

Leave a comment

O seu endereço de email não será publicado. Campos obrigatórios marcados com *

Artigos recentes

Comentários recentes

Arquivo

Categorias