Daqui a pouco passaremos por aqui nos Caminhos Contados em Picoitos e este é um dos vários textos e histórias que ouviremos contar após as 21 horas.
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Eu fugia da escola.
Tinha um irmão na Malhadinha, para lá do Guizo, eu ia a pé, fugindo. Chegava lá e o meu irmão, tu por aqui, alguma coisa deves ter feito, não foste á escola, hein?
Não, deixei a pasta á porta da escola, ou enterrada no monturo, e ó abre, fui por essas lonjuras em busca de horizontes e de andar à minha vontade.
Passado o dia, já bem de noite, chegou o meu pai a cavalo no cavalo, ele está aí?
Pois estava, deitado, dentro de uma jumendoura, ele agarrou em mim como se fosse num borrego e vá de me montar no lombo do cavalo. Até aos Fernandes ninguém falou, nada, nada, nada, ninguém disse nada, chegados a casa ele perguntou, amanhã vais à escola?
Eu fui, mas passado uns dias, escondi a pasta na estrumeira e voltei ao mesmo. Andava amaltesado por esses cerros com moirais e pastores, embalado pelos chocalhos do gado, dormia abrigado nalguma barreira, em serras de palha ou debaixo das estevas, era conforme, e comer era algum bocado de queijo ou pão que me dessem, alguma laranja ou romã apanhada nos quintais e nas hortas da beira do rio, boletas sendo tempo delas, e assim andava dias, esquecido do tempo, de casa e da escola. Certa manhã aproximei-me da escola, a moçada viu-me e foram dizer à professora, era tudo a correr atrás de mim, ora quem é que me apanhava? Quando parei de correr já ia no rio, levava uma cheia que ia de barreira a barreira, andavam lá dois homens com fateixas colhendo a lenha que vinha com a corrente, carregavam-na em burros, ao fim de um pouco apareceu a minha mãe, alguém lhe teria dito da direcção que tomei, anda para casa que te faço alguma coisa de comer, fui, já havia oito dias que não comia pão.
Quando calhava ir á escola, a professora ensinava as coisas e chamava os outros ao quadro, eu não sei e eu não sei, diziam eles, e não é que eu ia lá e fazia aquilo bem? Fiz a quarta classe com dez anos, não falhei ano nenhum, mas faltava muito, mal-empregado moço, diziam as professoras sem perceberem bem o que ali se passava, uns andam na escola e não aprendem, este pouco cá entra e fica bem.
O meu destino era outro, aos doze anos já andava com trezentas ovelhas na Penha de Águia, vinham levar-me o comer e dormia ali ao pé do gado, deitado com a pelica por baixo e a mochila à cabeceira e um búzio para soar a espantar alguma zorra que se atrevesse. Ia para o Vale do Poço, batia lá o verão com elas, no inverno vinha para aqui outra vez.
De começo apanhei logo um ano ruim, não chovia, não havia pastagem, colhia folhas de figueira e parreira que carregava para o rebanho em espartões, cortava ramos de zambujeiro, levantava-me em noites de boa lua e o gado em ouvindo a machadinha bater, berrava e corria direito a mim , de modos que todas se amanharam, até que já em Dezembro, grossas pingas de água se começaram a ouvir e se demorararam por aqui, uns dias atrás de outros, já o rebanho estava salvo e os borreguitos criadotes.
Já era homem e manobrava com mil e quinhentas ovelhas, foi quando me juntei ao Inocêncio que tinha umas mil, juntámos quase três mil ovelhas, e três homens, dois burros carregados, jogámo-nos a caminho de Milfontes, a pé, levámos treze dias de viagem para lá ir aproveitar o verde, foi neste tempo do começo de junho, aqui tudo seco e para lá de Colos, tudo verdinho. Fizeram uma viagem para lá do mais lindo, ainda pariram algumas, enfiávamos os borregos em sacos para irem a cavalo nos burros, por vezes havia quem não nos quisesse a passar no terreno deles, eu não fumava, mas levava uma mancheia de maços de tabaco para oferecer um cigarrinho aos homens e acompanhar uma léria, ó amigo, tenha lá paciência, e assim de bom modo nos deixarem passar por aquilo que era deles, às vezes havia um ou outro mais bruto, mas lá nos entendíamos.
Chegados aquelas charnecas litorais, estava tudo verde, caiam grandes branduras, os campos de tremocilha, molhados pela manhã. Então os animais começaram a malear, a malear, ainda morreram lá umas quantas. Não se deram com aqueles ares. Mudamo-las para a Tanganheira, havia lá bons restolhos de trigo e começaram a melhorar um pouco, o que é certo é que deitavam a cria fora, e no mesmo dia andavam com os carneiros, eu já desmorecido dizia, isto vai a estar uma coisa bonita. Olha, certo é que agarraram todas as ovelhas, ficaram todas cobertas, Já no Outono, com mais treze dias a pé para casa, chegaram aqui cheias, e em fevereiro criei uma borregada do mais lindo, do mais lindo que pode haver.
Procurei lonjuras e fazer um viver à minha vontade, mas foi nesta viagem que comecei a ser mais valente, a ganhar vontade de aumentar.